play

A porta da velha oficina continua igual: enorme, verde, sem campainha. O batedor claro, já foi roubado. Abri-la é entrar no tempo que já passou há muito, num sítio onde fui crescendo e que, sem dar por isso, deixei de ver.
Gostava de ter sabido, da última vez que a vi a funcionar, que seria essa a última hipótese de registar a sua algazarra, cada pormenor do que se passava, ter feito as perguntas todas. Mas não se pode saber. Acho que nem ela soube.
A ideia que dá ao entrar é a de que alguém carregou na pausa, que ficou tudo pronto para trabalhar amanhã. As chaves na gaveta, o casaco pendurado, os tubos para trabalhar, o tacho no fogão, as encomendas na parede e o sabão azul e branco para as mãos. Mas não houve amanhã. E o pó tapou a caneta, entrou nos balões, cobriu as caixas e juntou-se às ferramentas.
Eu lembro-me do som das máquinas a funcionar, de refilar com as vezes que ia fazer recados, de aprender a desenhar por ali, de ouvir um "não corras", de sentir o calor e ver aquelas mãos a moldar vidro, como se de barro se tratasse.
Eu sei que a memória me falha, falhará ainda mais, e por isso é que me tento agarrar a todos os bocadinhos que resistiram ao pó, tudo o que consiga cuidar e dar nova vida, cada pequenina coisa em que possas ter remexido. Assim posso fingir voltar a carregar no play e recordar-te em todos os amanhãs.

Comentários

  1. Estou lavada em lágrimas...
    Fizeste-me reviver cheiros, barulhos, vozes... tudo aquilo que só quem lá esteve aprendeu e viveu naquele espaço tem.
    Um espaço que agora parece parado no tempo, e que em tempos tantas alegrias e aprendizagens nos deu.
    Carregaram mesmo na PAUSA...
    Tenho saudades... do barulho ensurdecedor dos maçaricos a trabalhar o vidro, do rádio sempre na antena 1, de ouvir a Bola Branca...
    De embrulhar vidro e fazer embalagens...
    De lavar o vidro e de o por a escorrer...
    Tenho saudades de tudo...
    Obrigada pelas recordações...

    Tia Xana

    ResponderEliminar

Enviar um comentário